A irracionalidade das práticas da assistência ao parto - a contradição entre o que prescreve a ciência e como as práticas se organizam - tem intrigado muitos estudiosos do tema há várias décadas. Para iluminar esse enigma, além dos movimentos sociais organizados e daqueles que lidam com a medicina perinatal, surge a contribuição de antropólogas que vieram a compor o que hoje se conhece como a 'Antropologia do Parto' (…).
Entre os trabalhos mais provocativos (…) está o da antropóloga cultural Robbie Davis-Floyd, e em especial o seu livro Birth as an American Rite of Passage (1992).
A partir de mais de cem entrevistas com mulheres de classe média e profissionais de saúde nos Estados Unidos, a autora explora as experiências pessoais desses personagens em relação ao parto e sua formatação cultural. Ela parte do reconhecimento de que todas as sociedades humanas canalizam o processo de nascer para ritos de passagem, que têm a marca dos valores que essa sociedade partilha. Uma das contribuições mais inovadoras do texto é demonstrar que, diferentemente do que costumamos pensar, a transferência do local de parto da casa para o hospital não representou uma des-ritualização daquilo que em outras sociedades ditas primitivas foi sempre um processo carregado por superstições e tabus. Pelo contrário, a transferência do parto para o hospital "resultou na mais elaborada proliferação de rituais em torno deste evento fisiológico já vista no mundo cultural humano".
Ela descreve um ritual como a encenação (…) padronizada, repetitiva, simbólica e transformativa de uma crença ou valor cultural, cujo principal objectivo seria o alinhamento do sistema de crenças do indivíduo com o da sociedade. Um rito de passagem consistiria numa série de rituais através dos quais as pessoas são transportadas de um status social para outro, desse modo transformando tanto a maneira como a sociedade o define quanto como o indivíduo define a ele mesmo. Esse processo transformativo exigiria experiências fora do comum, incluindo dificuldades e desafios físicos e mentais, cujo enfrentamento facilitaria a ruptura com o estado anterior e a abertura psicológica dos iniciados nos novos papéis.
A partir dessa perspectiva, Davis-Floyd analisa as maneiras pela quais os sistemas de valores e crenças norte-americanos (especialmente o lugar da ciência e da tecnologia, e das instituições que as disseminam e controlam) se expressam e se perpetuam nos rituais em torno do parto hospitalar. Ela busca dissecar, nesses rituais que chamamos 'procedimentos da assistência', seu simbolismo, sua matriz cognitiva, o padrão repetitivo, a desestruturação e estabilização cognitiva, o senso de inevitabilidade, o carácter dramático e sua intensificação, o compromisso com o status quo, e mesmo suas contradições e paradoxos.
No capítulo sobre as mensagens do parto, a autora convida-nos a uma análise simbólica de cada uma das rotinas padronizadas na assistência norte-americana. Quase nada escapa ao seu olhar provocador que chama o leitor ao estranhamento diante das condutas, analisadas quanto a sua descrição oficial e justificativa, aos efeitos fisiológicos, às respostas das mulheres e aos seus objetivos rituais. Assim ela percorre as rotinas: o uso da cadeira de rodas para a admissão da parturiente, a separação da família, a troca das roupas pelas batas abertas do hospital, a lavagem retal, a permanência no leito e a limitação de movimentos, a privação de comida e de água, o uso de soro na veia, o uso de ocitocina para aumentar as contrações, o rígido controle de tempos e movimentos, os usos da analgesia e anestesia, a ruptura das membranas, o monitoramento fetal interno e externo, os toques vaginais, as orientações de quando fazer ou não fazer força, a transferência do pré-parto para a sala de parto, a posição deitada, com as pernas para cima e imobilizadas, o uso de panos cirúrgicos estéreis, de mãos atadas, de máscaras e de desinfetantes; e por fim a episiotomia (corte da vulva e vagina) - e ainda os procedimentos do pós-parto e da assistência ao bebê.
É importante lembrar que o livro, publicado há dez anos, já se remete ao questionamento interno à própria medicina sobre a extrema variabilidade geográfica do que seria a "assistência adequada" e sobre quais seriam as bases científicas das rotinas utilizadas. A partir da segunda metade da década de 1980, muitos grupos de profissionais passam a se organizar para sistematizar os estudos de eficácia e segurança na assistência à gravidez, ao parto e ao pós-parto, iniciando um esforço que se estendeu mundialmente, apoiado pela Organização Mundial da Saúde e que revolucionou o que hoje chamamos de assistência adequada.
A avaliação científica das práticas na década de 1990 vem postulando a efectividade e a segurança de uma atenção ao parto com um mínimo de, ou nenhuma, intervenção sobre a fisiologia e a adopção de muitos procedimentos centrados nas necessidades das parturientes - ao invés de organizados em função das necessidades das instituições e profissionais. Trata-se de uma mudança de paradigma que redimensiona totalmente a sentido da assistência. Entender os componentes dessa assistência em sua dimensão simbólica, como rituais, se torna ainda mais relevante hoje do que era há uma década.
Para nós, profissionais de saúde, um dos obstáculos à compreensão dessas dimensões rituais e simbólicas do parto está justamente na nossa dificuldade de transpor a crença 'religiosa' que temos na racionalidade da técnica. Como escreve Davis-Floyd, à medida que cresce e se acumula a evidência de que os procedimentos médicos habituais na assistência ao parto são muitas vezes desnecessários e mesmo danosos, "muitos indivíduos envolvidos com o tema se perguntam como uma prática que se propõe tão científica pode ser tão irracional". Ou como nos informa uma médica brasileira, conhecedora das pesquisas sobre essas evidências: "Racionalmente, eu sei que não é pra fazer a episiotomia. Mas a minha mão vai sozinha". Nós nos perguntamos: se sabemos que as rotinas não são inocentes, por que é tão penoso mudar?
Para a autora, os procedimentos obstétricos tenderiam a permanecer, independentemente de sua efectividade, de sua segurança ou do sofrimento que provocam, por serem "respostas rituais racionais para o medo extremo, em nossa sociedade tecnocrática, dos processos naturais dos quais esta sociedade depende para continuar sua existência"
Sobre a episiotomia e sua permanência, por exemplo, mostra, através dos depoimentos de usuárias e provedores, em que medida "os médicos, como representantes da sociedade, podem desconstruir a vagina (e por extensão, suas representações), para então reconstruí-la de acordo com nossas crenças culturais e sistema de valores". A mensagem é que as mulheres não são capazes de dar à luz as crianças sem a tecnologia, que resgataria mãe e filho dos riscos e seqüelas do parto.
Nesse trabalho, a exploração dos vínculos entre a 'sexualidade' e a 'reprodução' aparece como uma tarefa fundamental, compreendendo o parto como uma função sexual normal das mulheres (…). Para Davis-Floyd, um dos mais importantes dilemas da assistência – é a sua crença na superioridade da tecnologia sobre o corpo - é remover a sexualidade do processo de parir, pois tudo na cena do parto é referido à sexualidade suas secreções e gemidos, sua corporalidade, a gestação como resultado de uma relação sexual e mesmo os genitais expostos e manipulados. "Hoje, a sexualidade se mantém como uma potente ameaça conceitual aos poderes criativos da tecnologia, e a sexualidade feminina se mantém como a principal lembrança dessa ameaça".
Ainda hoje persiste, apesar das evidências de ser na maioria das vezes muito dolorosa além de arriscada, a rotina da administração de ocitócitos para acelerar o parto, através do 'vínculo umbilical' do soro intravenoso, prendendo a mulher à instituição e a 'nutrindo' com o medicamento. Essa permanência teria também como finalidade comunicar à mulher a superioridade do nosso conceito cultural de tempo como linear, mensurável e associado à produtividade, e o tempo profissional como mercadoria valiosa - enfim, a superioridade das necessidades da instituição sobre as da mulher. Comunica também que o corpo da mulher deveria funcionar como uma máquina e, se não está produzindo sozinho as reações consideradas adequadas à produtividade institucional (contrações, dilatação), esse corpo é uma máquina defeituosa, cujo ritmo deve ser corrigido, e submetido ao das instituições e profissionais. O aumento (e eventual insuportabilidade) da dor resultante da ocitocina "serviria aos objectivos rituais de enevoar, atordoar - isso é, de acelerar a ruptura do iniciado com seu sistema prévio de valores, através da intensificação da tensão física".
O livro de Davis-Floyd traz-nos questões fundamentais para o diálogo com os profissionais de saúde, tais como: qual o nosso lugar como profissionais e cuidadores, educados para a intervenção e nela reconhecendo nossa identidade profissional? Qual o nosso papel diante dos questionamentos da eficácia e da segurança de nossas rotinas - para além do nosso papel como oficiantes desses rituais?
Se [nós médicos] fomos socializados (…) num "tipo de cinismo e arrogância intelectual" resultante da separação entre o conhecimento e percepção do sofrimento, valores esses que devemos absorver na nossa formação antes mesmo de ter contacto com os pacientes - como nos portamos diante das 'novas' pacientes, que falam e se movem, querem interacção, e mesmo esperam algum envolvimento emocional, alguma compaixão?
Para nós do campo da Saúde Coletiva, (…) o livro põe-nos diante da responsabilidade de tentar distinguir o que seria o carácter ritual da assistência e as condutas de fato seguras e efectivas - e mesmo a necessidade da convivência incómoda com a falta de certezas. Recoloca o debate acerca da maternidade segura: não há a priori nenhuma incompatibilidade, mas os serviços que associem segurança, efectividade e respeito aos direitos (mais ou menos o que temos chamado por aqui de 'humanizados') ainda estão em construção.
Para o movimento de mulheres, o trabalho de Davis-Floyd aponta para a necessidade de devolver ao parto e à reprodução sua dimensão erótica. E também, já que se trata de rituais, de pensar ritos mais ricos, mais significativos, mais satisfatórios, mais inclusivos, a partir da nossa diversidade como mulheres. Sim, nos coloca novas responsabilidades, uma vez que costumamos pensar o parto como mais uma ocasião de passividade e de entrega do corpo para o Outro. Quem queremos que presencie, ou que oficie esses ritos, como, onde, por quê? Enfim, a principal provocação parece ser: nesse momento de passagem, que valores queremos partilhar e transmitir?
Artigo de Simone Grilo Dinis, médica brasileira, publicado na Revista Estudos Femininos, 2005, adaptado por Carla Guiomar
versão original em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2002000200023&lng=en&nrm=iso
1 comentário:
excelentes artigos, obg!!!
:o)
Beijos e abraços
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