quarta-feira, 5 de janeiro de 2005

Humanização do Parto

(...)Sou médico também, obstetra e homeopata, e trabalho no R. Grande do Sul, mais exatamente em PortoAlegre, e todos me chamam de Ric.
Eu, por outro lado, não concordo com esta afirmação de que "não importa a maneira do nascimento(normal/cesariana), mas sim o resultado final". Lutamoscontra esse tipo de conceito há muitos anos. Se eu fosse jogar futebol e voltasse sem uma perna, não aceitaria que me dissessem: "ok, o importante é que vc está vivo, e vc não é menos homem por não ter uma perna, certo?"

Se eu soubesse que perdi minha perna porque foram negligentes com as minhas necessidades e minhas vontades, eu ficaria muuuuito bravo. Achou demasiado comparar com uma amputação? Pois se vc ler alguns depoimentos de cesariadas vai perceber o quanto a cirurgia amputou uma parte importante da sua feminilidade. E o quanto isso ainda dói em muitas delas. Eu também acho que uma mulher não se define por seu parto, assim como acho que um homem não se define por suas pernas ou por sua capacidade de engravidar e ser pai.

Mas experimente dizer a um homem: "vc não pode engravidar uma mulher, mas não tem problema, basta ir a um banco de sêmem e vocês podem ter filhos sem problema. Vc não vai se sentir menos homem por isso, né?"Assim, não acho cabível que se desconsidere o processo; porque a mulher É o processo. Quando dizemos "o final é que importa" estamos considerando apenas os produtos: uma mulher viva (como se a única coisa importante num parto fosse sobreviver a ele) e um bebê saudável (o produto "social" - nãomaterno). Este posicionamento (é bom quando todos sobrevivem), por mais honesto e correcto que possa parecer, é a antiga ladainha dos cesaristas. É assim que se explicam todas as cirurgias desnecessárias, os procedimentos impensados, as intevenções extemporâneas, porque sempre sobra essa frase para ser dita no final. Depois de uma invasão da integridade de uma mulher, sempre há um obstetra que virá dizer: "Mas porque você está chorando? Você está se recuperando bem da inflamação nos pontos, e seu bebê até que está engordando na pediatria. Viu? Eu não falei que no final ia tudo dar certo?

Mais de 99% dos residentesde boas intenções desistem de um caminho humanista pelos obstáculos que encontram, mas aqueles que sobram acabam se tornando o "melhor da raça",porque resistiram à avalanche de críticas e à violência da eclésia médica, pois tinham suficiente paixão pelas mulheres para sobreviver aos ataques.Apenas quis apontar um discurso que conheço há 22 anos, que é a fala dos que apenas apontam o resultado como significativo.

As mulheres mutiladas neste país sabem que isso não é verdade; elas sabem da importância do caminho, muitas vezes mais digno e relevante do que a chegada. Espero que você tenha força de continuar em sua jornada transformativa, e que comprenda que existem diferenças entre um verdadeiro humanista do nascimentoe um médico carinhoso e gentil. Humanismo não se relaciona (diretamente, ao menos) com "humano" ou "humanidade".
Relaciona-se com uma corrente filosófica chamada "humanismo", que situa-se doutrinariamente numa posição antropocêntrica, e que se baseia na defesa dos valores humanos como preponderantes.

O humanismo contrapõe-se à tecnocracia, por ser esta um sistema de poder que oferece supremacia àqueles que controlam as máquinas, deixando o humano em plano secundário.
Ser humanista do nascimento é fazer a mulher protagonista de sua história, devolvendo-lhe a capacidade de gerir seu futuro e seu destino. "Humanizaçãodo nascimento é devolver protagonismo à mulher. O resto é sofisticação de tutela", já me soprava o Max desde os tempos em que eu tinha a sua idade. (...)

Carta de Dr. Ricardo Jones a Érica, em Lista do Parto Nosso

3 comentários:

Carla Guiomar disse...

Adorei este texto do Ric... ninguém escreve como ele...

Já agora reproduzo o comentário que na altura fiz na lista partonosso relativamente a este assunto:

"(...) Se não importasse a forma de nascer, esta lista não existiria, nem existiria todo um movimento de humanização do parto a crescer em vários países do mundo. A forma de nascer não faz as mães menos mães, mas é uma experiência com um impacto importantíssimo na forma como a mulher vê e sente o seu corpo, e mesmo que de uma forma não consciencializada, isso vai ter um impacto na forma como ela está na vida, como se relaciona consigo própria e com os outros. E a forma de nascer pode ter de facto impactos sérios na saúde de tanto a mulher como o bebé, como comprovam as evidências científicas. E o que é afinal uma mãe e um bebé "bem" no final do parto? Estar bem não é apenas estar visivelmente bem aos outros naqueles instantes a seguir ao parto. É estar fisicamente, psicologicamente, socialmente e espiritualmente bem, e há riscos que se transportam para uma vida inteira, resultantes da forma de se nascer, que não se conseguem medir nos dias a seguir ao parto, nomeadamente aqueles que se prendem com a capacidade de amar (ver trabalhos de Michel Odent - A Cesariana, A Cientificação do Amor, O Camponês e a Parteira)."

Um abraço

Carla Guiomar
Bióloga, Doula, Mãe do Leonardo (4) e do Eduardo(2)
Portugal

ni disse...

Adorei o texto do Ric e o da Carla tb. Fico logo c'a lagrimita ao canto do olho... Mais palavras para quê?
Vocês são um espectáculo!
;o)
Beijinhos e abraços

Trocas e Baldrocas disse...

Olá, esta é a primeira vez que escrevo no vosso blog. Tive conhecimento dele através de uma amiga comum.
Gostei muito de ler o texto do Ric. Na minha humilde opinião, e no meu caso em particular, não só era necessária uma cesariana pois não tinha forças fisicas ou psicológicas para fazer nascer a minha filha, como a minha saúde não permitiu na altura um parto natural. Após a cirurgia é claro que me doeu os pontos e tudo o resto, principalmente o facto de não me ter sido possivel assistir ao nascimento, pois estava sob o efeito de anestesia geral. Mas hoje acho que, sem dúvida, foi a melhor opção, primeiro porque um parto natural poderia me ter marcado negativamente ou eu poderia não ter resistido na altura e teria perdido a missão maravilhosa de ser mãe com todos os prós e contra que atravessamos; segundo, porque não coloquei a vida da minha filha mais em perigo nem fi-la passar por mais sofrimento.
Não sou contra um parto natural mas acho que com o evoluir das tecnologias, se é possivel poupar o sofrimento de alguém, porque não??!!...
Eu preferia não ter uma perna a morrer pois acho que por pior que seja ou esteja a nossa vida, vale sempre a pena viver.
Mas é necessário que as pessoas que lidam com o sofrimento dos outros, médicos, enfermeiras, auxiliares ou e, outros, se consciencializem que a profissão deles é mais do que trabalho, tem que ser amizade, apoio, compreensão, etc.
Bem o texto já vai longe.
Gostaria apenas de deixar também aqui um convite a visitarem o meu Blog: Trocas e Baldrocas.
Um Beijo,
Cláudia